não, não tem problema, pode tirar o sapato.

(senta aí. tem coca na geladeira e cuca de quechimia no forno)

quinta-feira, 3 de março de 2011

A perfeição e a seriação da fala serão, portanto, delegadas às máquinas e aos robôs!

A Gagueira do Rei: subjetividade e sintoma

Carla Guterres Graña


Atire a primeira pedra quem nunca gaguejou: ao falar em público em frente a um microfone, ao fazer uma declaração de amor, ao esquecer-se do que deve falar, quando cansado ou quando nervoso? Sim, por incrível que pareça a gagueira, ou melhor, a disfluência também faz parte da comunicação de todos os falantes não-gagos do mundo inteiro. Quer dizer que o ato de fala implica inevitavelmente em errar, esquecer, repetir sílabas ou palavras inteiras? No-novamente a resposta é afirmativa, gaguejamos em uníssono.

A disfluência não é somente exclusividade dos que apresentam este sintoma de linguagem na sua fala. No entanto, o que diferencia a fala de um gago da de um não-gago? O simples e complexo fato de que o ato de gaguejar enquanto falamos não nos impede de continuar a falar, não nos rotula de “gago” e não nos faz sentirmo-nos mal-falantes. Contrariamente, os sujeitos que apresentam o rótulo de “gagos”, que perdem o frescor e a espontaneidade da fala e que vivem desesperadamente tentando controlar e despistar a sua gagueira, só conseguem com isso tornar a sua fala tensa, marcada por bloqueios, repetições e desvios.

Já Freud, em um artigo de 1891 denominado Sobre as Afasias, refere que a parafasia (sintoma encontrado nas afasias e que se caracteriza pela substituição de uma palavra por outra- chamar garfo de colher- ou de um som por outro - chamar uma colher de mulher) também poderá ser encontrada na fala do indivíduo normal, sob situações de stress, distração ou perturbação afetiva. Esta simples observação permite constatar que o sintoma da fala está presentificado na fala cotidiana, ou seja, que o normal, o patológico, o regular, o irregular são características pertencentes à linguagem. O lapso, o “erro”, a pausa, o imprevisto, a criação, a poesia realçam a marca do humano na linguagem. A perfeição e a seriação da fala serão, portanto, delegadas às máquinas e aos robôs!

O Discurso do Rei está em cartaz nos cinemas brasileiros, recebeu diversas indicações ao Oscar e levou o prêmio de melhor filme do ano. Além do filme inglês, podemos também presenciar diariamente na televisão a luta (e a maneira quase original de lidar com a gagueira) que um dos concorrentes do BBB11 trava na disputa do prêmio do programa. Ele é “carinhosamente” chamado de “gago” pelos amigos-¬concorrentes de confinamento. A gagueira esta na moda, e de certa forma no bom sentido! Espaços são abertos na mídia para a discussão (espaços mais que necessários para discutirmos e divulgarmos a profissão e o fazer do fonoaudiólogo) e a informação da população sobre a patologia: o quê fazer, o quê não fazer com os “gagos”, e a eterna dúvida: a gagueira tem origem emocional ou orgânica? Lemos em artigos bastante categóricos e midiáticos: A gagueira não é emocional! Nenhuma pesquisa, entretanto, chegou, até o momento, a uma resposta conclusiva que demonstre de modo irrefutável o quê, no organismo humano, explica a gagueira.

O sujeito é linguagem, o sujeito se constitui na linguagem, como demonstrou exaustivamente o psicanalista francês Jacques Lacan; todos nós somos feitos de histórias, como já disse o poeta. Não se poderá, portanto, pretender excluir da terapêutica da linguagem a subjetividade do paciente (sujeito) em questão. Pela sua boca circulam os significantes e os afetos que o constituíram. Pela boca o seu ser se diz. Ele não poderá de forma alguma ser circunscrito ao aparelho fonatório ou à insuficiência funcional de áreas ou de circuitos cerebrais. Como explicar os “gagos” que somente tropeçam na fala quando falam com figuras de autoridades, como o pai ou o chefe? Como explicar a total fluência da fala do Rei George VI, no filme referido, durante os períodos em que estava irritado com o terapeuta ou com outra pessoa? Como explicar o fato de nenhum gago gaguejar quando conversa consigo mesmo (Logue faz este mesmo questionamento ao então Duque de York em uma consulta)? Seria possível, face a tudo isto, tratar da gagueira somente com exercícios e técnicas fonoaudiológicas?

Certamente Lionel Logue (Geoffrey Rush) era um terapeuta pouco ortodoxo para sua época. Antes desse speech therapist pouco convencional, a realeza havia experimentado renomados médicos na esperança de remover aquela “vergonha” da boca do segundo filho do rei. Médicos que tratavam exclusivamente da boca. Aliás, essa era a imperativa demanda da realeza: resolver o problema da fala sem penetrar na intimidade do duque. Elisabeth (Helena Bonham Carter), esposa do duque, procura Lionel como uma última cartada contra a gagueira persistente do marido. Lionel faz, então, sua primeira exigência: ele e o futuro paciente deveriam se tratar pelo nome próprio. Ali não estaria o Duque de York, filho do atual rei da Inglaterra, mas simplesmente Bertie (maneira como o duque era chamado pela família), com Lionel. Dois homens, sem sobrenomes ou títulos. Sob tal condição, Lionel começa o tratamento, e para desespero do futuro rei ele quer saber detalhes de sua historia: como e quando a gagueira começou, como é a dinâmica familiar, com quem Bertie tinha mais apego na infância, etc. George desconfia da curiosidade demonstrada pelo terapeuta; para que saber tudo isso se o problema é na boca? Para que toda essa conversa tola? Logue leva em frente o tratamento e lança mão de exercícios de relaxamento, de dicção, de impostação de voz e de mais conversa. O futuro rei, descrente de tudo e de todos, precisou acreditar que aquele sujeito excêntrico e heterodoxo poderia ajudá-lo. A terapia continua, e Bertie e Logue estreitam o vínculo afetivo! O atual rei morre e o filho, atordoado com a morte do pai, procura o terapeuta de fala. Mas trata-se ainda e somente de um terapeuta de fala? Ou de alguém que se ocupa também da pessoa de Bertie? O espaço (setting) terapêutico se expande! O irmão mais velho de George, pouco preparado para assumir o trono, deverá assumir o lugar do pai. Para Logue parece evidente que George será o novo rei, e não seu irmão. Ele se assusta com o assinalamento de seu terapeuta; afinal, se mal pode falar, como assumiria um cargo tão importante? Seria mais uma loucura de Logue? Por ironia do destino, pouco tempo depois David (Guy Pearce), irmão de George, renuncia a seu direito, cabendo, então, ao Duque de York assumir o trono. George VI assume o reinado no início da segunda guerra mundial e tem a responsabilidade de comunicar ao mundo que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha. O discurso do Rei George deverá ser veiculado pelos modernos meios de comunicação da época: o rádio e a televisão. O rei deveria, portanto, falar bem, clara e fluentemente; ter “voz ativa”. Para isto a presença de Logue, este Outro com que desenvolvera um laço que se manterá por toda a vida, terá uma importância fundamental.

Poderíamos, diante do relatado até então, indagar o que efetivamente auxiliou o Rei em sua luta contra gagueira: os exercícios técnicos fonoaudiológicos ou a relação afetiva estabelecida com o terapeuta? A experiência e um certo trânsito pela transdisciplinaridade nos levariam a responder que os dois fatores foram decisivos, e mais, que eles são interdependentes, um não funciona sem o outro. Nenhuma técnica sobrepõem-se ao vínculo terapêutico, que é intersubjetivo; o instrumento precisa do humano, do inter-humano, do que não é palpável, nem medido, para que se faça eficaz em um tratamento. Nesta perspectiva, a abordagem terapêutica deverá construir um novo sentido para a imagem de falante, que altere a relação do sujeito com o sintoma e com o Outro, exigindo do fonoaudiólogo uma leitura da situação clínica que ultrapasse os estreitos e ingênuos limites ditados por uma perspectiva estreitamente organicista.

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